Setor bate registros de visitantes, mas especialistas da ABETA alertam para os riscos da informalidade e da falta de qualificação técnica
O turismo brasileiro vive um marco histórico. Somente nos quatro primeiros meses deste ano, o país recebeu mais de 4,2 milhões de turistas estrangeiros , superando todos os registros anteriores para o período, segundos dados divulgados pelo governo federal. Em paralelo, os parques nacionais brasileiros contabilizaram 12,5 milhões de visitas em 2024 , outro registo que confirma a força do turismo de natureza e o interesse crescente pelas riquezas naturais do país.
Os bons números são comemorados pelo setor, mas acendemos um alerta: o crescimento precisa ser acompanhado de profissionalização e qualificação técnica para que seja sustentável . A recente queda de um balão com 33 pessoas – e a morte de uma passageira – na zona rural de Capelo Alto, interior de São Paulo, torna evidente a necessidade de uma discussão mais ampla sobre os requisitos, leis, normas e obrigatoriedades de segurança no setor.
Esse debate, já antigo, ganha ainda mais relevância com a Declaração do Cerrado , firmada pelos países do BRICS no dia 12 de maio, em Brasília, e que registra o turismo como ferramenta estratégica para o desenvolvimento econômico e sustentável no Sul Global.
“Entre muitos problemas, há três grandes gargalos que, hoje, impedem o crescimento do turismo brasileiro de natureza: a informalidade, a ilegalidade e a baixa qualificação dos profissionais envolvidos em todas as áreas ”, afirma Luiz Del Vigna, diretor-executivo da Associação Brasileira de Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura, a ABETA.
“De maneira geral, a prestação de serviços no turismo brasileiro é muito mal feita”, alerta o especialista, o que gera impactos diretos na qualidade da experiência e na satisfação do cliente, na sua segurança e nas questões de ASG, que incorporam critérios ambientais, sociais e de governança nas operações.
Informalidade como obstáculo
A expectativa para o fechamento de 2025 no setor de turismo é positiva, com projeção de alta de 3,8% (faturamento de R$ 211 bilhões) , segundo o Conselho de Turismo da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). Mas, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a taxa de informalidade no setor da Economia Criativa, na qual o turismo se encaixa, foi maior do que a média nacional e chegou a 42,2% em 2024.
“A informalidade pode resolver imediatamente um problema de geração de renda, mas esse tipo de atividade não cria uma estrutura empresarial de desenvolvimento que sustenta o setor ”, adverte Del Vigna, ao explicar que esse tipo de cultura leva à ilegalidade e à má formação técnica.
Com a missão de qualificar, profissionalizar e desenvolver boas práticas em busca do desenvolvimento sustentável do turismo de natureza no país, a ABETA oferece diversos cursos e capacitações, online e presenciais, que buscam suprir as lacunas no turismo de natureza . Ainda assim, mesmo nos cursos gratuitos, a procura é baixa em relação ao número de serviços oferecidos no mercado.
“Temos mais de 100 associados, que seguem a lei e se capacitam, mas a realidade do mercado é outra: operadores, gestores, guias, condutores e toda uma cadeia que, em sua maioria, não oferece serviços conectores – e muitas vezes coloca os clientes sob riscos”, explica Fernanda Dornelles, vice-presidente da ABETA.
Programa Aventura Segura
Em 2006, a ABETA desenvolveu, em conjunto com o Ministério do Turismo e com o Sebrae Nacional, o programa Aventura Segura, que hoje conta com 44 Normas Técnicas – das quais 5 foram transformadas em Normas Internacionais através da ISO Internacional Organization for Standardization. As normas serviram de referência para a construção do decreto de regulamentação da Lei Geral do Turismo (LGT), regramento que é de implementação obrigatória para agências e operadoras do setor.
A espinha dorsal dessa implementação é o Sistema de Gestão de Segurança, que atende à Norma Técnica ABNT NBR ISO 21101- uma regra que ajudou Evandro Schütz, da empresa Atitude Ecologia&Turismo, a garantir a segurança de mais de 450 mil pessoas nos serviços de tirolesas com mais de 100 metros de extensão e arvorismo a 18 metros de altura em Canela, no Rio Grande do Sul.
“Com a ajuda da ABETA, implementamos o sistema de gestão de segurança e identificamos, em nosso inventário, 932 possibilidades de danos, e montamos a operação de forma a prevenir estes possíveis acidentes”, ele explica. Em 13 anos oferecendo o serviço, o registro de incidentes de baixa intensidade foi menor que 0,01% , mas houve um caso em que a empresa precisou aplicar toda a extensão do conhecimento adquirido.
O não cumprimento de um procedimento por parte do condutor e o consequente rompimento parcial de um backup de freio resultaram em acidente com hematomas, escoriações e desvio de septo de um cliente, que foi socorrido de acordo com os procedimentos de emergência estipulados.
” Os riscos são intrínsecos ao turismo de aventura, mas por causa do Sistema de Gestão de nós sabíamos exatamente o que fazer, e acionamos o plano de atendimento de emergência. Tudo deu certo, o cliente ficou bem, e consegui comprovar na investigação da polícia civil – por ter sido gerado um boletim de ocorrência pela família – que seguimos Segurança todos os procedimentos estruturados com base nas normas ABNT e da legislação”, conta Schütz.
Cultura de prevenção é exceção
Mas, segundo os relatos dos associados da ABETA, o caso de sucesso da Atitude Ecologia&Turismo é uma exceção. A contabilização é complexa, já que não há um órgão centralizador de informações e estatísticas sobre o número real de acidentes e as gravidades envolvidas no turismo de aventura no Brasil.
O Relatório Brasileiro de Acidentes de Turismo, feito pela Associação Férias Vivas com base em levantamentos na imprensa nacional e de depoimentos pessoais por meio do Aplicativo Eu Vivi contabilizou 3.960 acidentes no turismo brasileiro, de forma geral, entre 2002 e 2020. A conclusão é de que a maioria dos eventos foi causada por erros de operação: 49% dos casos envolveram algum grau de imperícia do profissional contratado; 70% dos acidentes ocorreram por negligência do prestador de serviço; e em 77% havia ausência de equipamentos de proteção.
” Embora já existam iniciativas exemplares e empreendedores extremamente comprometidos com boas práticas, infelizmente ainda são minoria . Sentimos falta de um número maior de parceiros que, além de conhecerem as exigências legais e as normas da ABNT, também incorporaram a gestão de segurança e a sustentabilidade no coração de seus negócios”, afirma Daniela Meres, da Gondwana Brasil, de Curitiba.
Uma agência que trabalha com turismo receptivo, com foco no mercado internacional, e contrata terceiros em praticamente todos os elos da cadeia, o que exige uma curação criteriosa. Ainda assim, em muitos casos, é necessário fazer o papel de sensibilizar e insistir para que os empreendedores locais implementem práticas de forma contínua, com monitoramento e melhoria constante.
Além disso, Daniela reclama da ausência de uma pressão mais estruturada do mercado nacional para que essas boas práticas deixem de ser diferenciais e passem a ser rigorosamente divulgadas entre as operadoras, contratantes e destinos.
Ela explica que no mercado internacional essa pressão já é uma realidade: operadoras estrangeiras frequentemente exigem seguros de responsabilidade civil, contratos claros, códigos de conduta e até certificações como condição mínima para a parceria. “ Isso mostra o quanto o Brasil ainda precisa avançar para se alinhar aos padrões globais de segurança e sustentabilidade no turismo de aventura ”, diz.
” A verdade é que a nossa indústria turística está aquim de sua grandeza. Precisamos trabalhar para transformar todo esse potencial humano e territorial na referência que sonhamos ser para o mundo”, finaliza Del Vigna.